SUITE I —  M A R É / S U S P E N S Ã O / A D E M O R A / S O L Q U E A Q U E C E ( B A R B A D O S )
 S U S P E N S Ã O
Se a suspensão é a arte de balançar
Se a suspensão é a arte de balançar
E ser leve no mar
Sempre o mesmo e nunca igual
Se o rio me diz: “olha aqui tu não vais voltar”
E se tudo em mim me diz: “olha, igual tu não vais voltar”
Resta pôr-me a andar — não deixar verter dos olhos o mar
Não chorar
“Oh não, terá sido em vão?”
Ah, ah, ah, não, não, não
Nunca foi em vão.
Se a inquietação só nos serve de lição
Quando o bem querer ainda não finca o pé no chão
Resta vaguear e ser nunca o mesmo, nunca igual
O que é sempre igual

“Oh não, terá sido em vão?”
Ah, ah, ah, não, não, não
Nunca foi em vão.
Olha as voltas que eu dei até aqui chegar
E as voltas que dás só para nos tentar
E eu que quero sempre saber
Se a vontade é forte para nos levar
Agora que vou, quem dera —
Quem me dera, quem nos dera — ficar

 

“Oh não, terá sido em vão?”
Ah, ah, ah, não, não, não
Nunca foi em vão.

A DEMORA
A demora sobeja dos dias
Como quem tenta navegar sem vento
E o desejo?
Alimentado a pão e água
Vai beijando a fome
Quando a tempestade surge / É sempre sem avisar
Vai e vem — “Vai e vem” / Incessante —“Incessante”
E parece maior do que a curva do meu olhar
Toma conta de mim / E perdura —“ E perdura”
Que é do sol que se vive querendo? “Vivo querendo”
O que é este querer que só se quer lento? “Só se quer lento”
E a lentidão que te vive sorvendo? “Te vive sorvendo”
Mas quem sacia esta sede que te vai bebendo?
Que é do sal que se vive lambendo.” Vivo lambendo”
E em suspenso vai-se vivendo
“Vai-se vivendo”
E a leveza?
É a minha teimosia
Como quem finge que nem sequer sente
Se ninguém sabe bem o que fazer
Com a expectativa a flutuar
Nos nossos brandos dias
Mas quando a bonança surge
É sempre sem avisar
Vai e vem —“Vai e vem”
Sem cessar, sem cessar
E parece que dá p`ra viver de tanto nos espraiar
Toma conta do aqui
E perdura —“E perdura”
Que é do sol que se vive querendo. “Vivo querendo”
O que é este querer que só se quer lento? “Só se quer lento”
E a lentidão que te vive sorvendo? “Te vive sorvendo”
Mas quem sacia esta sede que te vai bebendo?
Que é do sal que se vive lambendo? “Vivo lambendo”
Num querer que te deixa sedento “Deixa sedento”
Nesse sol em que te vives estendendo “Te vives estendendo”
E em suspenso vai-se vivendo,
“Vai-se vivendo”
E perdura/ E perdura / E perdura / E perdura

S O L Q U E A Q U E C E ( B A R BA D O S)
As voltas que eu dou para me tentar
São voltas que tu dás até regressar
São rochas que arranham o meu peito
A água clareia os meus pés
E o sol que me aquece de um jeito
Tu nem sabes, nem sabes se vais
Ou se queres sequer voltar
Voltar aqui / A esta praia outra vez
De regresso outra vez
As voltas que eu dou até perceber
Que a sede é um rio que não pára de correr
No sal que se entranha no peito
Nas rochas que aquecem os pés
O sol que nos lembra de um jeito
Bem sabes, bem sabes que vais
Que vais e queres voltar
Voltar aqui / A esta praia outra vez
De regresso outra vez
Teus reflexos outra vez
Nesta água outra vez
E quem sabe se é para ficar
Se é para sair, se há-de voltar
Cintila uma luz que cerra o olhar
Banha-se o sol no sossego do mar
E a areia atravessa-me os dedos
Lambe-se o sal sorvido em cabelos
A pele curtida é a minha estiva
Deixa-me estar, deixa-te andar
As voltas que eu dou…

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L O B A

O horizonte assim
Suspenso por um fio
Quando o tempo nesta rede raiou
Se é assim
Dá-me linha p’ra poder voltar
Se ser lobo é um estado natural
Leva linha p’ra saber sair
Que piada teria meu acordar
“Se eu sei meu alguém p’ra quem
ser Loba?”
“Loba”
Andamos nós assim
Suspensos por um fio
Bem mordido pela boca o amor
Ainda assim
Puxo linha p’ra poder soltar
Se ser loba é um estado natural
Parto a linha p’ra saber sair
Que piada teria teu desejar
“Se eu sei meu alguém p’ra quem
ser Loba?”
“Loba”
Poder voltar
É estado natural
Saber surgir
Regressar
“Se eu sei meu alguém p´ra quem ser
Loba?”

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 M A R G E M D E L Á
Viu-me na margem de lá
Fez uma dobra no início da onda
E foi caindo
No centro da roda
Ninguém chega lá
Menino olha que essa roda só tem fundo lá
Onde não tens pé
Menino vem ouvir o céu cantar
No vai-vem da maré
Menino vem à tona devagar
Ao fundo um ponto chama-te a luzir
Miragem em que não chegas a tocar
Menino um dia eu vou mergulhar
E quem ao longe ainda me avistar
Irá também surgir
Devagar
Vi-o na margem de lá
Fiz uma dobra no início da onda
E fui caindo no centro da roda
No centro da roda
No centro da roda

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SUITE II CASA É CANÇÃO — FOME DE LOBO

C A S A É C A N Ç Ã O
Casa é canção
Onde ecoa um refrão sem esforço
Casa reluz
No tilintar da chave o teu rosto
Casa é qualquer lugar
Onde descansas o teu peito
Casa tem dois braços que
Nos recebem de qualquer jeito
Casa é de dois
De cinco de sete
De quantos formos nós todos
Casa seduz
Pé descalço
Meu sossego em seu ombro
Casa é qualquer lugar
Onde descansas o teu peito
Casa tem dois braços que
Nos recebem de qualquer jeito
Geografia onde fica a minha casa?
E que significa não ter poiso, não ter nada?
Geografia, o que define a minha casa?
“Casa não tem tempo de partir ou de chegar
Casa toda é tempo para quem sabe regressar. “

SUITE II 07 CASA É CANÇÃO / 08 FOME DE LOBO
 F O M E D E L O B O
Pouso o olhar no lado de lá
E enxergo
Que o lado de lá não tem nada para dar
O Inverno foi duro para nós,
Tão feroz
Mostrando os dentes qual lobo
Parece que nos quis morder
E a nós, a nós, a nós?
“Só nos resta viver.”

Poiso os pés no lado de cá
E eu espero
Que o lado de cá tenha algo para dar
Ou eu quebro
Que o incerto faz de nós um ser feroz
Uma fome de lobo que só se quer saciar
Para depois, depois, depois
Para depois sossegar
E o que seria de mim
Sem esses braços a cuidar
Do que vos tenho p’ra dar?
E o que seria de nós
sem por fim acreditar
Que o futuro é feroz
Mas sabe o que faz
Será que sabe o que faz?
Mas sabe o que faz?
São dois passos para a frente um para trás.
Será que sabe o que faz?
Mas sabe o que faz?
Se um lobo só quer sossegar
Será que sabe o que faz?
E será que é audaz
Dar dois passos prá frente um para trás?
Será que sabe o que faz?
Será que é audaz?
Meu lobo só quer sossegar.
Será que sabe o que faz?
“Mas sabe o que faz”.

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I L H A S S Ã O D E M A I S
Ilhas são demais
Já não vejo ninguém
Ilhas são demais
E tu?
Tu és quem?
Ondulando em lençóis
Meu corpo é água que vai e que vem
Errante entre dois sóis — nós dois
Ilhas de ninguém
E o sol que teima em tardar
O seu azul
Nas pálpebras mornas de quem
Se deixa sombrear
Por quem lhe quer bem
“E baloiça em ti um cais
De tudo o que a vertigem sustém
Sem saber para onde vais
Rumo a silhuetas de quem?”
“Ilhas são demais
Ilhas são demais.”

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T A N T O F A Z
Tanto dá o mar, tanto faz
Tanto faz quem não vem
Quem não vem não se dá
Só se dá, quem se tem
Que se dane o mar se nos faz
Se nos faz suspender
Suspender o voltar
Re-voltar a viver
“Mas se por acaso for voltar
Àquilo que era
Não, não, não, não, não, não”
Já não é o que foi
E o que foi tanto faz
Tanto fez esquecer
E são tantos passos para trás!
Mas e se for o mar que nos faz
Que nos faz reviver
Reviver e voltar
E voltar a querer?
“Mas se por acaso for voltar
Àquilo que era
Não, não, não, não, não, não”
Não contem comigo, não contem
Não contem, Não contem comigo não
“Mas se por acaso for voltar
Àquilo que era
Não contem comigo, não”
Conta comigo para ancorar o coração
Conta comigo para ancorar a tua mão.
“Mas se por acaso for voltar
Àquilo que era
Não contem comigo, não

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U M A O N D A
Rio diz-me se alento acaba
Rio leva-me de volta à casa
Olha rio, não, eu já não acho graça
A adivinhar o que esse porvir para mim aguarda
Por isso vem, vem, vem
Embala que é no voltar
Que me encanta a espuma dos dias
Eu sei que tens, que tens, que tens
Tanto p’ra nos contar
Do que é feita a espuma dos dias
“Dos dias, dos dias, dos dias”
E o que me prende na tua demora
É tudo o que abisma, tudo o que transforma
E já agora diz se nos ampara a onda
Nesse leva, enrola, e puxa
Eu perco a hora
Por isso vem, vem, vem
Embala que é no voltar
Que me encanta a espuma dos dias
Eu sei que tens, que tens, que tens
Tanto para nos contar
Do que é feita a espuma dos dias
“Dos dias, dos dias, dos dias”
“Oh, vem no embalo também
Nossa pérola está na boca de quem
Só vem no embalo também”
Nossa pérola está na boca de quem?
Por isso vem, vem, vem
Embala que é no voltar
Que me encanta a espuma dos dias
Eu sei que tens, que tens, que tens
Tanto para nos contar
Do que é feita a espuma dos dias
“Dos dias, dos dias, dos dias”
Vem que a onda, a onda só quebra
“Só quebra”
Porque tem, tem de quebrar
A onda, a onda só quebra
“Só quebra”
E vai deixar de ser
“Até bom porto nos levar”
A onda, a onda só quebra
“Só quebra”
Porque tem, tem de quebrar
A onda, a onda só quebra
“Só quebra”
E vai deixar de ser
“Só para nos levar”

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SUITE III MARINHEIRO — CAIS
M A R I N H E I R O — C A I S
Tira os meus braços daqui e poisa-os à tua volta
Ando p’ra aqui sem dormir a flutuar nas horas
Marinheiro, esta água é tão doce que transborda
Hora de ir embora e a cidade nem desconfia
Perde-se em roucas sinfonias de rugidos e buzinas
Enquanto a voz do mar nos tira o sono
Eu tiro os meus pés do chinelos e fico mais um pouco
Vou escrevendo na pele o que não digo sob o torpor de Agosto
Ah Marinheiro, esta terra fica para lá do sol posto
É hora de ir embora e a cidade nem desconfia
Segue na branda melodia de sussurros e espertinas
Enquanto a voz do mar nos tira o sono
“A cidade vai e vem, vai e vem e esconde
Memórias de quem? Memórias de quem está longe
A cidade vai e vem, vai e vem, já não perdoa
Enquanto reflecte o teu nome nas ruas de Lisboa”
Solta as amarras e vem viver na boa
Que todas as mágoas têm seu jeito em que já não magoa
Marinheiro, eu sei que esse sal no teu peito tem
Hora de ir embora e a cidade nem desconfia
Segue na surda harmonia que ecoa na neblina
Enquanto a voz do mar nos tira o sono
“A cidade vai e vem, vai e vem e esconde
Memórias de quem? Memórias de quem está longe
A cidade vai e vem, vai e vem, já não perdoa
Cada légua de vida que passas fora de Lisboa”